A mesa posta. Madeira por baixo dos nossos bustos endurecidos. Pões os cotovelos na mesa, juntas as mãos. Os teus olhos não largam a televisão, ainda hoje me pergunto porquê. Não consigo perceber se é para não te vermos a cor da tristeza nas pupilas, ou para não notarmos que elas brilham mais quando ela as ataca. Há quem lhe chame lágrimas, mas quando tu choras não são só lágrimas.
As cadeiras desarrumadas, um perfil cheio de pensamentos barulhentos que não páram de me encher os ouvidos, que não páram de me confundir a cabeça, que não param de me morder o músculo cardíaco.
Como é que vos salvo, se nem a mim consigo?
A fragilidade ataca-me as pernas como bebedeira em estilo de quase coma, mas eu fico em pé (por vocês). Estou aqui, podes vir, mas por favor não chores. Por favor não caias, não te atires, não faças nada. Espera nesse suave balançar, nesses suspiros engolidos, nesse sentido que agora não te faz sentido nenhum, que te enleia as voltas, que não te dá em troca aquilo que prometeu; espera aí que um dia eu virei buscar-te. Um dia eu virei buscar-vos e mostrar-vos que este rumo valeu muito.
Cada poro meu grita por não ser tocado por este ar, cada fissura por preencher sente-se alargar por este cansaço soberbo que te vejo na face, por este castanho escuro que as tuas rugas deixam revelar; são o filme-retrato de uma vida que já não te surpreende. A tua posição de "gostava que fosse diferente, mas que queres que faça? Eu quase me mato!" abana-me, sacode-me, morde-me, fura-me, brinca comigo ao esconde-esconde; prevertido paradoxo sentimental.
Diálogos automáticos e repetidos que os meus ouvidos sabem de cor, que eu digo antes que se realizem, que saiam das vossas bocas.
Eu vejo-vos sentarem-se. Vejo-vos as pernas sem vida, os pés um tanto quanto mirrados; não são velhos, ainda não, mas são usados. Esmagaram vidros e afrouxaram os espinhos das rosas, e vocês foram sempre assim, calados e sossegados. Vocês foram sempre assim, heróis de uma coisa qualquer que nem sabem sequer o quê. Só sabiam que o tinham de ser, porque não havia mais ninguém que o fosse por vocês. Aqui reside o pequeno mar que vos queria mostrar. Aqui residem todas as palavras que a pouco e pouco vou soprando, esperando de dedos traçados que surjam como brisa no meio do calor deste deserto. Aqui é onde assenta a nossa casa, numa coisa parecida a rocha que vista de fora tem o aspecto de areia movediça.
Mas quando tu choras não são só lágrimas. São sonhos não realizados, ambições esquecidas, um não saber oferecer sorrisos, um não saber notá-los quando os ofereces. São pequenos raios de desespero a emanarem do meu âmago, a forçarem-me a deixar cair estes olhos de pássaro distraído, a pressionarem-me as veias de forma cruel, a estrangularem-me a segurança com amor, a moverem-me os pés para fora da zona emocionalmente saudável com subornos.
Eu vejo os teus olhos brilhar, e sei que não posso cair, e agarro-me com a maior força das leis da física, e revolvo-me em ânsias e tentativas contínuas; eu quero-te bem. Eu quero-vos bem.
Eu quero que no meu silêncio, se o conseguirem escutar sobre todas as artimanhas dos constituintes da vida, sobre tudo os barulhos que o mundo faz ao mover-se, sobre todos os ruídos de quedas que moram dentro de vocês, encontrem um lugar para descansar.
Eu quero ver-vos sorrir e ficar lá emcima durante um bocadinho maior. Mas vocês nunca passam da mesa, da cadeira, e dos bustos embrutecidos. Alguém vos pediu assim, presumo que foi a natureza injusta dos humanos. A natureza do que vos rodeia, que vos esmaga contra imprevistos e perdas que tantas vezes eu vi o peito não conseguir abarcar.
Não, não chores, não caias, não tremas. Não corras, não grites, não te obrigues a morrer. Não te faças morrer.
A mesa está posta, por entre as ranhuras de uma máscara de ferro já ferrugenta deixas escapar quantidades de medo fugitivas, para logo de seguida te recriminares. E eu grito "Não, não tens de ser sempre forte." Por entre os movimentos do teu peito deixas transparecer um mais aguentado. E eu grito "Não, não precisas de ser sempre um super herói."
Deixa-me ser eu, forte, a que aguenta, a que vos segura.
Deixa-me ser a heroína, pelo menos uma vez antes que a capa seja comida pelo tempo e pelo medo. (Porque um dia eu vou ser tão assustada quanto vocês, mas hoje eu ainda sou só eu.)
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