quinta-feira, 17 de março de 2011

A dança.

Já não páro quando passas. Já não olho á espera de ver o mesmo brilho a pintar-nos as palavras, porque esse brilho se extinguiu e nós sabemo-lo. Atrás do brilho acabaram também por fugir as palavras. Ou fizemo-las fugir, porque assim também foi mais fácil para nós, a fuga.
Já não me surpreendo com um sorriso escondido ou um cochicho abreviado, uma pose mais defensiva e um ignorar cravado em toda a tua extensão. Não há porquê, nem o pode já haver.
 A única coisa que me continua a lembrar de ti é a dor pequena mas incisiva que nasce a cada palavra tua que rodopia em volta da minha cabeça como vento de Inverno e me embate com força nas falhas que se denotam, vaidosas da maldade a que incitam. Essas palavras que não são diálogo para mim, que não estabelecem uma ligação mas sujam a que existiu, actuam como facas que esfolam a pele e desnudam o vermelho escuro, íntimo inseguro que te dei nas mãos fechadas.
Esqueci-me de te segredar que o não proclamasses alto, que ninguém podia ouvir. Esqueci-me que era provável que também tu deixasses de me segredar um dia, e começasses a gritar, gritos molde de tantos outros.
Agora ardem-me as falhas e os ouvidos, e ardes-me tu.
Juro-te, tive o máximo cuidado para que não te caísses dentro da fogueira enquanto dançávamos e anoitecia, mas eu também não te podia agarrar...Eu não podia dizer-te que cravasses o teu pé no solo e não mais o movesses, o teu sorriso ia esmorecer e o teu corpo cairia sobre a areia molhada. Ficaria sujo, as feridas arder-te-iam e eu tinha medo do teu esgar de agonia. Por isso deixava-nos dançar, e enquanto eu me afastava das chamas, tu aproximavas-te. E eu chamava-te, eu chamava-te do fundo da minha voz alta e quebradiça. E eu chamava-te, e chamei-te a última vez com a voz alta embargada pela nota das lágrimas, que destoava em muito da melodia. Nunca fomos réplicas de Beethoven ou Bach, por isso nem parecia tão mal.
Desleixadas.- Simples humanas que se subjugaram á condição natural de malévolas, não fomos mais que isso, e não atingimos sequer o recomendado, quanto mais o perfeito! - E morremos as duas.
Fechei os olhos e virei costas, quando voltei a olhar para trás já não eras tu, e já não era eu. Tu riste, e eu cerrei os maxilares.
Eu era vento e tu chamas, e enquanto me davas a mão, queimámos tudo mais que havia para queimar. Não era o querer estar perto, mas o querer deitar no chão, o querer desenhar o preto e ausência da luz. E nós fomos as vitoriosas desse jogo que inventámos apenas para prolongar a falsa vida a uma coisa que sabiamos morta.
 Hoje eu já não te oiço, e tu já não me ouves. Há a espessa diferença que forma um espaço igual a uma distância de quinhentas milhas. Somos apenas só corpo vazio na mente uma da outra, silêncio figurado por reticências e gargalhadas de ocasião que novamente destoam e se notam tão vazias que chega a doer a quem é perspicaz.
 Por isso, o silêncio. Hoje ainda dói, porque não adormeci. Hoje ainda dói, porque ainda não te adormeci. Ainda não te matei por completo e vou deixando que me mates numa ignorância ingénua de criança, máscara não ensaiada, perfil de momento, acto que surge por falta de melhor reacção.
Por isso, só o silêncio, o final do final que se arrasta, o preciso final para que eu possa expirar.
Já não páro. Já não páro, porque o motivo dessas paragens, desses brilhos e dessas palavras se esvaiu entre as minhas entranhas antes que formasse nelas raiz e lhes fizesse uma sombra maior que o esperado, as impedisse de criar doçura, tal qual as laranjas.
E fica o silêncio atrapalhado. Só o silêncio atrapalhado.